3 de maio de 2024
|

Contrariando a famosa frase do senador americano Daniel Patrick Moynihan, Bolsonaro acredita ter direito não só às suas próprias opiniões, como aos seus próprios fatos. Primeiro o desmatamento em curso na Amazônia era invenção do INPE, o instituto respeitado no mundo todo como o melhor monitor de florestas tropicais. Depois o dinheiro doado pela Alemanha era uma forma de “comprar a Amazônia a prestações” e a Noruega atacava a política ambiental brasileira para esconder sua caça à baleia. Quando surgiram as imagens das queimadas descontroladas, Bolsonaro disse que poderiam ter sido provocadas por ONGs “para prejudicar a minha pessoa”. Depois disse que poderiam ser ETs ou índios. Quando o presidente francês Emmanuel Macron chamou as queimadas de “crise internacional”, Bolsonaro o chamou de colonialista e de conspirar por uma intervenção na região.

Os fatos, no entanto, são teimosos. Bolsonaro mantém um discurso antiambientalista há décadas e uma vez eleito incentivou madeireiros, pecuaristas e garimpeiros. O seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, precisa ser controlado pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, que sabe os efeitos sobre as exportações brasileiras.

Pária internacional

Os efeitos internacionais são irreversíveis. Bolsonaro tornou-se um pária. Isso terá consequência sobre as exportações brasileiras e a imagem do país. As consequências políticas ainda são nebulosas. A Câmara é claramente pró-ruralista e dificilmente abriria um front com o presidente pelo meio ambiente. A mídia brasileira tem tido uma cobertura tímida comparada aos veículos estrangeiros.

A cartada de Bolsonaro são os militares. Há décadas, a doutrina da Escola Superior de Guerra supõe a possibilidade de uma invasão internacional na Amazônia sob o pretexto de que o país não consegue proteger a floresta. Essa foi uma das bases da política de reforma agrária do governo João Figueiredo (“integrar para não entregar” e “homens sem terra para uma terra sem homens”) e motivo das seguidas hostilidades dos militares às ONGs. Nesse momento de crise, Bolsonaro se volta para os quarteis.

Alguns pontos para entender a importância das queimadas:

 • A Floresta Amazônica, ao contrário do Cerrado, não queima espontaneamente. Isso significa que, se há fogo na região, alguém ateou. As queimadas são uma tradição na estação da seca que vai de julho a outubro. A má notícia: a maior parte das queimadas ocorre tradicionalmente em setembro.

• Usa-se o fogo na Amazônia, principalmente, para fazer o roçado ou para encerrar o ciclo de desmatamento. O corte de florestas novas obedece a lógica econômica simples. Primeiro se retira as árvores com potencial madeireiro, depois é feito um corte para obter lenhas e estacas e, finalmente, quando o que era possível retirar acabou, ateia-se fogo. Existem técnicas centenárias de controle do fogo, embora o vento possa descontrolar o sentido.

• Este não é o pior ano de queimadas na região, até porque estamos ainda em agosto. Em 2003, 2002, 2005, 2007 e 2010 queimou-se mais, mas, de novo, a comparação só deve ser feita ao final do ano. O que se pode afirmar com certeza é que este é o pior dos últimos três anos, de acordo com dados do INPE. Pesquisas da USP com fuligem das queimadas comprovam que o fogo deste ano está diretamente vinculado ao desmatamento de florestas novas e não a antigas pastagens.

• Desde junho, o INPE tem alertado um aumento entre 60% e 80% nas áreas de desmatamento em relação ao ano passado, de acordo com cálculos feitos por fotos de nove satélites. A reação do presidente Bolsonaro foi ordenar a demissão do presidente do Inpe. Em 2004 o Brasil chegou a 25.000 km2 de floresta desmatados no ano. De lá pra cá reduziu-se a taxa em 70%.

• A ideia de que a floresta é o pulmão do mundo é uma metáfora ultrapassada desde os anos setenta. A Amazônia consome quase todo o oxigênio que produz, mas influi diretamente no regime de chuvas do continente, num processo batizado de rios voadores. A floresta emite vapores orgânicos para o ar, provocando o condensamento e a formação das chuvas no Centro-Oeste, Sudeste, parte do Sul e influenciando o fenômeno El Niño.

• A queima da Floresta Amazônica amplia o efeito estufa por uma característica particular do bioma. Como o fogo não faz parte do ciclo da floresta, as árvores acumulam uma quantidade incrível de gás carbônico, liberado na queimada. Numa comparação grosseira, o mesmo hectare de Floresta Amazônica é mais poluente do que a queima de uma mata do Cerrado, que tem o fogo no seu ciclo natural. Por isso, entre o final do século XX e começo do XXI se calcula que o Brasil contribuía através das queimadas com um volume de carbono quase igual aos dos Estados Unidos, o maior poluente mundial.

• Isso mudou radicalmente nos últimos dez anos. Pesquisas do INPE mostraram que mais de 70% de todos os focos de incêndio da região estão concentrados em poucas dezenas de cidades em Rondônia, Pará, Tocantins e Mato Grosso. Trabalhos de polícia ostensiva nessas cidades no período das secas fez a quantidade de focos cair drasticamente. Também tornou o Ibama uma das instituições mais odiadas da Amazônia. Em 2012, o novo Código Florestal perdoou parte significativa das multas antigas em troca da preservação de áreas nativas.

• Ao assumir, o ministro Ricardo Salles substituiu quase todos os diretores de parques nacionais e superintendentes do Ibama por policiais militares e oficiais do Exército, a grande maioria sem experiência de Amazônia. Quase um terço das verbas de operação do Ibama foram contingenciadas.

• Em julho, o ministro Ricardo Salles visitou madeireiros de Espigão d’Oeste (RO) duas semanas após a queima de um caminhão-tanque a serviço do Ibama. O veículo estava sendo usado para abastecer três helicópteros que apoiavam uma operação contra o roubo de madeira em terra indígena. Salles defendeu os madeiros, “pessoas de bem que trabalham neste país”. No Facebook, Bolsonaro acusou “o pessoal do meio ambiente, do Ibama” de estar “queimando caminhões, tratores” dos madeireiros.

• Em 2007, o Brasil fechou um acordo com a Noruega, Alemanha e o Banco Mundial para criar o Fundo Amazônia. Eles doaram quase R$ 2 bilhões para manter parques nacionais, florestas nacionais e áreas de manejo numa fórmula engenhosa. O dinheiro nunca entrou nos cofres públicos, ou poderia ser contingenciado ou transferido para outra finalidade. O dinheiro vai para um organização não-governamental chamada Funbio que contrata e paga serviços como aluguel de helicópteros para ação da Polícia Federal, gasolina para os jipes de fiscalização do Ibama e reflorestamento de áreas degradadas.

• O ministro Ricardo Salles forçou o rompimento do Fundo Amazônia ao ameaçar desviar o dinheiro destinado à Amazônia para pagar indenização a fazendeiros do Rio Grande do Sul. Os governos da Noruega e Alemanha suspenderam o envio das verbas e Bolsonaro comemorou.

Foto: Victor Moriyama/Greenpeace/Facebook

Show Full Content
Close
Close