14 de maio de 2024
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O ex-jogador de futebol e comentarista Walter Casagrande é o quinto entrevistado da série “Década de Rupturas” e analisa o cenário do esporte no Brasil.

Centroavante nos anos 80 e comentarista da TV Globo, Walter Casagrande diz que o pior efeito da derrota em 2014 foi reforçar esquemas defensivos, mas que isso mudou agora com técnicos como Jorge Jesus e Renato Gaúcho. “Depois de ver o Flamengo, nenhum torcedor tem mais paciência para ver o seu time se defender. O time que jogar fechadinho, cujo único objetivo é não cair, corre o risco de diminuir de tamanho”, prevê. Em conversa nos estúdios da TV Globo antes de uma gravação, Casagrande falou de Neymar, a ausência de jogadores que falem além de futebol e de sua luta contra as drogas.

O que o futebol brasileiro deveria ter aprendido com o 7×1 da Copa de 2014?

Não é questão de aprender, é não assumir o medo. É uma coisa psicológica. Você tem duas saídas quando está com medo: ou fica fechadinho ou sai para o confronto e tenta enfrentar aquele medo. O futebol brasileiro escolheu se encolher, não combater esse medo, jogar fechadinho. Só agora o pessoal está perdendo o medo, com o Renato Gaúcho, o Jorge Jesus, o Thiago Nunes e Jorge Sampaoli. Estamos perdendo o medo.

Qual a última vez que assistiu a uma seleção brasileira com prazer?

A última geração com jogadores geniais foi a de 2002, com Ronaldo, Rivaldo, Roberto Carlos, Ronaldinho Gaúcho, Cafu. De 2010 pra cá, o futebol brasileiro ficou retraído.

Sinal de falta de craques ou de técnicos?

Tenho até dúvida se a gente tinha uma geração ruim mesmo ou se os treinadores começavam a intimidar os jogadores. Dos anos 80 para trás, os treinadores brasileiros deixavam os jogadores jogar, livres para tentar um drible diferente, para ter uma iniciativa diferente. E aí os treinadores foram tirando, tirando, tirando isso do jogador. Eles formaram uma geração com excessiva disciplina tática – “vamos fechar, vamos marcar, todo mundo acompanha” – enquanto na Europa, muito por influência do Guardiola, se passou a jogar como os sul-americanos.

Há quase dez anos o Brasil tem um único craque, o Neymar. Qual é o risco da Neymardependência?

Deveria ser superpositivo ter um jogador acima da média como o Neymar, mas os outros jogadores têm que jogar o futebol deles. Só que eles pegam a bola e jogam para o Neymar sem nem pensar. Se cada um fizesse o seu melhor, quando passassem a bola para o Neymar era para decidir o jogo.

Há quase dez anos o Brasil tem um único craque, o Neymar. Qual é o risco da Neymardependência?

Deveria ser superpositivo ter um jogador acima da média como o Neymar, mas os outros jogadores têm que jogar o futebol deles. Só que eles pegam a bola e jogam para o Neymar sem nem pensar. Se cada um fizesse o seu melhor, quando passassem a bola para o Neymar era para decidir o jogo.

O que falta ao Neymar?

Foco na vida, não é foco na bola. Foco na vida. Ele se perdeu, cara, se perdeu. Não teve alguém para falar ‘Neymar, não está dando certo o que você está fazendo, não está dando certo o que você está falando. Não está dando certo seu comportamento’. Aquele negócio de cair e ficar rolando na Copa do Mundo virou uma chacota mundial! E o pior: era a camisa 10 que estava rolando. Meu, o Pelé levou a camisa 10 lá em cima, é a camisa mais respeitada e adorada no mundo todo. Você não pode desrespeitar essa camisa! Falta a ele saber bem a importância da camisa que está vestindo, saber a importância do futebol brasileiro, procurar estudar um pouquinho os grandes jogadores do passado para ver o comportamento deles, para ver como eles se relacionavam com a torcida.

As coisas mudam para a Copa de 2022?

Sou otimista, porque o Flamengo está jogando um futebol maravilhoso, coisa que a gente não via há muito tempo. O Flamengo de hoje está num grupo de Flamengo de 81, da Democracia do Corinthians, da Academia do Palmeiras. O futebol como implantado pelo Jesus, Renato, Sampaoli e Thiago Nunes vai mexer com o Tite. Não cabe mais no futebol brasileiro esse negócio de ficar se defendendo para tentar ganhar no chuveirinho.

Você citou o Jesus e o Sampoli, dois técnicos estrangeiros. Os brasileiros estão ultrapassados?

Não, o Mano Menezes, o Tite são grandes treinadores. Agora, eles têm que clarear a mente. Depois que ver o Flamengo jogar, nenhum torcedor tem mais paciência para ver o seu time se defender. Essa cobrança vai forçar uma reciclada. Ficar ganhando atacando não tem prazo de validade. Você pode perder, mas volta a ganhar.

Quando se vê a superioridade do Flamengo, não cria um risco da espanholização do futebol brasileiro, de ficar quatro, cinco times totalmente acima dos outros?

Se os times não se mexerem, sim. O time que jogar fechadinho, cujo único objetivo é não cair, corre o risco de diminuir de tamanho. Porque a torcida não tem mais paciência de torcendo para empatar, perder de pouco.

Mas é um futebol que ainda perde seus futuros craques aos 18 anos para o exterior. Existem casos como o Vinícius Júnior e o Rodrygo que foram para o Real Madrid, mas a maioria vai para a Ucrânia, Rússia, China…

Daí é grana. O moleque olha e não vê expectativa nenhuma. Ele quer ir para fora. A Ucrânia é uma porta de entrada para Barcelona, Real, Bayer. Mas tem uma coisa: veja o caso do Gerson, que fez o giro ao contrário. Ele saiu do Fluminense com 18, 19 anos, foi para Roma, terminou emprestado para a Fiorentina e apostou em jogar no Flamengo. Porque ele tranquilamente poderia jogar num time médio da Alemanha. Mas pensou grande. Ele topou a proposta, não financeira, a proposta do jogo. Hoje, esquece Roma e Fiorentina. Se o Gerson voltar para a Europa é para Real Madri, Juventus. O Gerson representa uma mudança. Acho que essa volta do Gerson pode ser uma chacoalhada na cabeça da garotada.

Ídolos de futebol hoje são celebridades. Como isso muda a relação do jogador com a torcida, com o clube?

O sujeito precisa saber que não foi para o Real Madri porque faz a barba legal. Ele faz a propaganda de aparelho de barba, porque joga no Real Madri. Isso criou uma confusão na cabeça dos jogadores. Parece que eles pensam assim, ‘eu sou tão celebridade quanto eu sou jogador’. Só que o segredo do negócio é a bola, e eles estão deixando meio que a bola de lado.

É uma vida dentro da bolha?

São aqueles fones de ouvido! Antes, quando eu via os jogadores descendo do ônibus todos com fones, pensava que eles não queriam conversa. Não! Eles colocam o fone de ouvido para ficar no mundo deles. Porque se tira o fone de ouvido, ele vai ouvir coisas que não está a fim de ouvir. Ele só está a fim de ouvir “você joga pra caramba”, “tem uma festa depois do jogo”. Eles esqueceram que existe um mundo real, que tem mancha nas praias do Nordeste, que a crise econômica no Brasil é grande, que a violência é muito grande. Para eles, parece que o mundo fica muito pesado se tirarem os fones do ouvido.

É correto cobrar um posicionamento dos jogadores de futebol?

Mas eu não estou cobrando de ninguém, cada um faz o que acha. Eu acho que é um erro um jogador de futebol que tem essa visibilidade, que tem o poder na voz muito forte, não falar nada. Isso me incomoda, mas é um incomodo meu.

Por terem tão poucos que falam é que a entrevista sobre racismo do técnico Roger Machado chamou tanta atenção?

Claro, ninguém fala nada, ninguém se expõe. Deixe dar o exemplo da Democracia Corintiana, um grupo de jogadores de futebol igual a esses. Nós podíamos também ficar lá confortáveis e jogar nossa bola e ganhar campeonato e deixar o Brasil correr, mas nós não pensávamos assim.

Qual a herança da Democracia Corintiana?

Politicamente foi importante, porque a participação de um jogador de futebol de um clube como o Corinthians trouxe atenção ao movimento das Diretas Já. Mas internamente não era nada demais. Íamos concentrar antes da partida: ‘E se os solteiros concentrassem só à noite e os casados ficassem em casa com a família?’. Vamos viajar, mas ao invés de sábado de manhã, vamos à tarde para o jogador ter mais tempo com a família. O time decide contratar um jogador. Eu acho justo você conversar com o elenco e perguntar para o elenco se o novato encaixa no grupo. Isso aí deveria ser uma coisa normal, não deveria ser um absurdo.

Por que movimentos de jogadores como Bom Senso Futebol Clube não deram certo?

Quando surgiu a Democracia Corintiana, os jogadores dos outros clubes ficavam espantados. “E se romper o contrato deles? E se forem suspensos?”. Com o Bom Senso, foram os mesmos medos. E esses jogadores estão errados de terem medo? Não estão errados.

A CBF teve três presidentes em sete anos. Dois deles presos e um que não pode sair do país. Não seria um motivo para os jogadores de futebol falarem?

Claro, mas daí o cara tem medo de ser boicotado. Falar exige coragem. Veja o caso da americana Megan Anna Rapinoe, que se recusou a ir à Casa Branca cumprimentar o Trump. Aí, eu penso: os jogadores de futebol no Brasil têm os mesmos princípios: não vou me envolver e não quero saber o que está acontecendo no meu país.

Você fala de exemplo. Ao final da Copa de 2018, ao vivo na TV Globo, você desabafou que aquela era a Copa mais importante da sua vida, porque pela primeira vez você saiu do Brasil sóbrio, permaneceu sóbrio e voltou para a casa sóbrio.

Na hora, fiquei emocionado. Foi muito difícil alcançar aquilo. Eu não tinha referência quando usava drogas. Fui me tratar, porque a minha família me colocou numa clínica, porque se não me tratasse ia morrer. E depois que fiz esse tratamento, que continua há dez anos, escrevi um livro (“Casagrande e seus Demônios”). Não acho correto estar fazendo o meu tratamento e indo bem sem que pudesse alertar aqueles que são dependentes como eu e que ficam com medo de se tratar. Eu quero mostrar às pessoas que o tratamento existe e tem uma luz no fim do túnel. Ela é longe para caraca! São dez anos de tratamento e eu fico alerta o tempo todo.

Como é viver alerta?

Encontrei um ponto importante na vida de um dependente químico que é o meu limite. Eu não posso cobrar de você que você mude o seu comportamento porque eu sou dependente. Isso me confundia muito no início da ressocialização. Eu pensava “poxa, quando eu sair com as pessoas, as pessoas não podem beber, elas têm que me respeitar”. E depois eu descobri que quem tem que respeitar elas sou eu.

Ser um exemplo para dependentes químicos é um peso?

Não sou o Superman, sou igual a todo dependente químico, só que encontrei meu caminho. Sabe uma coisa que me mudou? Fiz um tratamento em que a base é a verdade. Eu não minto, você pode discordar do que estou dizendo, mas é sincero, é a minha verdade. Porque se eu falar uma mentira para você, a minha cabeça vai pensar ‘ah já falei uma mentira aqui, posso falar uma outra ali, uma outra ali’. E a mentira maior que eu posso falar é que vou ao cinema e vou comprar droga. Então falo a verdade sempre, mesmo que a verdade seja ruim pra mim.

Casagrande na última década

2013
Biografia

Lança o livro “Casagrande e seus demônios”, com o jornalista Gilvan Ribeiro. Na obra, aborda em detalhes sua luta contra a dependência química.

2015
Cirurgias

Em maio, sofre infarto e passa cinco dias internado. É submetido a cirurgias de cateterismo e angioplastia e chega a ficar na terapia intensiva.

2016
Sócrates

Em nova parceria com Ribeiro, lança o livro “Sócrates & Casagrande, uma história de amor”, em que evoca memórias da amizade com o também craque do Corinthians.

2018
“Copa sóbrio”

Participa das transmissões da Copa da Rússia, a primeira após tratar sua dependência química. Emocionado, faz desabafo na final do Mundial, em suas palavras, o “mais importante” da sua vida.

Publicado no jornal O Globo no dia 19/12/2019

https://oglobo.globo.com/brasil/decada-de-rupturas-futebol-para-frente-do-jesus-vai-mexer-com-jeito-da-selecao-jogar-diz-casagrande-24146359

Foto: Renee Rocha / Agência O Globo

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